domingo, 25 de julho de 2010

O Povo de 2010 Está Aferrolhado Pelo "Povo" de 1975

Quando ouço falar de mais liberdade puxo logo da pistola

Há muito tempo que não ouvia uma quantidade tão grande dislates concentradas em tão poucas frases. Foi na terça-feira passada e teve como protagonista António Arnaut, essa espécie de bonzo do regime que emerge sempre que alguém discute no seu sacrossanto SNS. Ele, que ainda há pouco tempo saudava a “sublevação popular” que, na sua opinião, derrubara Correia de Campos, proclama agora que retirar a expressão “tendencialmente gratuito” da Constituição corresponde “a destruir o Estado Social para voltar ao Estado Novo”, para valem de ser um “golpe de Estado” e “uma subversão completa do modelo social”.
Não gozasse este antigo Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano de uma estranha condescendência por parte dos jornalistas e certamente alguém lhe teria perguntado se o nosso sistema continua a ser “tendencialmente gratuito” ou se, pelo contrário, se está a tornar “tendencialmente pago”; se a sua indignação sobre uma saúde para ricos e outra para pobres também se estende à actual norma constitucional que diz que a gratuitidade deve ter “em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos” (art. 64º); ou ainda se quando disse que “não pode haver pagamento no acto” desconhece que é isso que já sucede com as taxas moderadoras.
Arnaut pode contudo tonitroar um dia inteiro sem ter de responder a nenhuma pergunta menos ortodoxa porque ele representa bem o espírito de todos os que entendem que há temas tabu e insusceptíveis de discussão política e de todos os que sentem ser figuras tutelares do regime democrático.
Pelo caminho assistiu-se a uma explosão de demagogia que iludiu a discussão mais importante: existem ou não normas da actual Constituição que limitam a liberdade de os portugueses escolherem entre diversas propostas políticas? Por outras palavras: não continuará “o povo” de 1975 a mandar mais do que “o povo” de 2010?
Não haverá mesmo necessidade de devolver ao povo o direito de escolher o seu destino em vez de o aferrolhar ao que os “guardiões do regime” entendem ser a “interpretação genuína” do Estado Social?
Na verdade, independentemente da bondade das propostas do PSD (algumas das quais discutíveis ou mesmo disparatadas), a iniciativa de Passos Coelho teve um enorme mérito: abrir a discussão sobre os temas proibidos. Mais: ao contrário do que tem sido dito, num momento em que a crise nos obriga a repensar muitas das fórmulas do nosso Estado Social, não se compreende como isso não possa ser feito também em sede de revisão constitucional.

Vale a pena ver alguns exemplos que ilustram a oportunidade deste debate.
Um primeiro exemplo é o do estatuto da ADSE, o sistema de saúde dos funcionários do Estado. Qualquer cidadão que já tenha contactado com os benefícios desse sistema gostaria de estar inscrito na ADSE. E é fácil perceber porquê: o utente pode escolher livremente entre serviços públicos e privados e as taxas que tem de pagar são muitas vezes menores do que as do SNS. Pode-se, por exemplo, ir ao seu médico e não ao médico que o Estado escolhe. Mais: de acordo com um estudo divulgado há um ano e publicado em livro (Saúde: A Liberdade de Escolher, de José Mendes Ribeiro), o custo deste sistema para o Estado é menor, por utente, do que o custo do SNS. Ou seja, temos em Portugal, há muitas décadas, um sistema público de saúde que os nossos bonzos talvez classifiquem de “neoliberal” e feito para “encher os bolsos dosprivados”, mas que é eficiente sem deixar de consagrar a liberdade de escolha a que aspiram milhões de utentes.
Um segundo exemplo do absurdo em que vivemos – e dos termos absurdos da discussão em curso – é pensarmos que o sistema de saúde francês, por regra melhor classificado do que o português e que assegura níveis de cobertura, qualidade e universalidade que fazem dele um exemplo de Estado Social, poderia ser considerado inconstitucional em Portugal pela forma como integra, numa mesma rede, estabelecimento de saúde públicos e privados.
Isto significa que “o povo” de 2010, mesmo que quisesse, não poderia optar pelo modelo francês pois a Constituição está petrificada em torno do modelo desenhado pelo antigo grão-mestre da maçonaria. Ora a Constituição não devia ser um programa de Governo, antes estabelecer apenas princípios gerais e remeter o restante para as leis ordinárias. Como faz a Constituição espanhola (será ela neoliberal, camarada Sócrates?) que, no seu artigo 43º, se limita a reconhecer o “direito à protecção da saúde” e a estabelecer que “compete aos poderes públicos organizar e tutelar a saúde pública através de medidas preventivas e das prestações e serviços necessários”, os quais serão definidos por lei ordinária.
Um terceiro exemplo deriva também da comparação entre as constituições espanhola e portuguesa, agora no domínio da educação. A lei fundamental espanhola é muito económica: estabelece apenas que “todos têm direito à educação”, que “a liberdade de ensinar é reconhecida”, que o “ensino básico é obrigatório e gratuito” e que, ao Estado, apenas compete garantir que isso suceda. Já a nossa Constituição é palavrosa e contraditória. No artigo 43º estabelece a “liberdade de aprender e ensinar” para, no artigo 75º, acrescentar que “o Estado criará uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. Isto significa que, no momento em que essa rede existisse, ou deixava de haver liberdade de aprender e ensinar por só existir a rede pública, ou então esta seria excedentária pois teria de guardar lugar para todos os alunos que estivessem noutros sistemas de ensino. Ou seja, a nossa Constituição diz ao Estado para criar um monopólio público e, ao mesmo tempo, diz que haverá liberdade fora desse monopólio. É absurdo.
Um quarto exemplo é em Portugal o texto constitucional tornar quase impossível a passagem do actual modelo centralista do Ministério da Educação para um modelo descentralizado onde exista, em simultâneo, universalidade na oferta e liberdade de escolha entre escolas públicas e entre estas e as privadas, como o modelo para que evoluiu a Suécia nos últimos 20 anos. De novo a hipótese de escolher esse modelo devia, também ela, competir aos actuais eleitores, não aos de 1975 – no fundo devia ser uma escolha do “povo” de 2010.

Haveria muitos outros exemplos de absurdos constitucionais – ou de domínios onde a Constituição deixa de ser um conjunto de regras politicamente neutro para se tornar num programa de Governo – mas cito só mais um: de acordo com os chamados “limites materiais da revisão”, não se poderia tocar na “existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista”. Ou seja, ainda somos uma economia mista com planificação económica e não uma economia de mercado onde o Estado não é proprietário dos meios de produção. Seria hilariante se não fosse um sinal da tragédia irreal em que vivemos. É que, neste país, pedir mais liberdade, ou assumir-se como liberal, é motivo para fuzilamento (retórico) imediato.

José Manuel Fernandes, Público, 23 de Junho de 2010

Reitor

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